Por Vitor Marques
Desde a hora que a gente levanta da cama, milhares de outros objetos e substantivos vão passando diante da gente, na visão periférica, ficando para trás. E a gente segue a vida sem nem se dar conta de que as coisas e as palavras são parte da nossa carne, cada um dá nome ao mundo com as expressões que conhece.
Paulo Freire, que tinha um olhar sensível, prosa boa e flow poético, olhou tudo à sua volta e viu que os nomes e os sotaques eram chaves pro universo vocabular dos lugares e a gente que os construía.
Ensinar o que se vive!
Universo vocabular: reparar que o dia-a-dia das pessoas, elas mesmas é quem rege, com suas expressões próprias, seus trejeitos, suas prosódias, suas culturas e seus memes.
Feita essa observação, essa escuta contemplativa, cabe a quem alfabetiza incorporar no próprio corpo, agregar no próprio discurso as palavras que ouviu do outro.
E assim todo o material de letras, sílabas, palavras, vai sendo montado da boca do povo, pro papel, pro quadro negro.
Paulo Freire e sua equipe alfabetizaram milhares, com poucos equipamentos, na aurora daquela década em que golpes militares se espalham como praga pela América Latina.
O golpe de ’64 decretou o encerramento desse projeto que funcionava com o aval do governo federal. A ditadura civil-militar pôs logo suas garras de fora.
Artistas e intelectuais diversos sendo presos, espancados, mortos, expulsos da pátria ou ameaçados de morte, aconselhados a sair – para quem prefere os eufemismos.
E o Paulo Freire, um dos primeiros nessa leva, arrastado na mesma onda que levava Milton Santos, Gilberto Gil e Caetano pro desterro que deixava com saudade da Bahia.
O fim de uma era?
No lugar do método Paulo Freire de alfabetização, que era executado pelos círculos de cultura, a ditadura fechou o cerco e aprimorou a censura, enquanto impunha um jeito tosco de alfabetizar, com suas cartilhas, decorebas, sempre exportadas de fora.
O nome era Movimento Brasileiro de Alfabetização – popularmente simplificado, MOBRAL. Era um material tão ruim que, anos depois, a sigla até virou gíria para nomear algo ridículo.
E Paulo Freire segue vivo, as culturas se multiplicam, dialetos vão surgindo.
Um de seus últimos livros não poderia ter o título melhor escolhido: Pedagogia da Esperança. Há que ter muita esperança para continuar lutando, como nós todos estamos pelo chão dessas escolas e círculos de pessoas.
Pedagogia da esperança
E o método Paulo Freire, segue firme, construindo nas favelas, quilombos, assentamentos, subúrbios, periferias, bairros, praças, coletivos.
Se a esperança é como o sal, nas palavras de Saramago, pois não alimenta mas agrega algum sabor ao pão, a revolução cultural envolve o povo articulado, narrando e fazendo história, comungando da palavra e de um projeto de nação.
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